Fome no socialismo
Ditador da Coréia do Norte
se esbalda em luxo enquanto
o povo morre de fome
Fotos AP
Criança subnutrida num orfanato da Coréia do Norte. À direita, os fogos da festa de aniversário do ditador
Kim Jong Il: economia em frangalhos
A Coréia do Norte é um dos últimos dois bastiões do socialismo em estado mais puro. No aspecto rigidez ideológica, lembra a ilha de Cuba. Diferentemente da China e do Vietnã, países que, apesar de governados por marxistas, aderiram à economia de mercado e prosperam em ritmo acelerado, norte-coreanos e cubanos se mantêm firmes na trincheira do verdadeiro socialismo. Mesmo que isso signifique a opção preferencial pela pobreza. Em comum, ambos os países têm presidente perpétuo – Fidel Castro e Kim Jong Il. Outra característica compartilhada é a incapacidade de alimentar a própria população. Nesse aspecto, vale ressaltar que os norte-coreanos estão muito mais esfomeados que os cubanos. Mais de 3 milhões de pessoas morreram devido à fome na Coréia do Norte nos últimos dez anos. Estima-se que entre 6 e 8 milhões, de uma população de 22 milhões de habitantes, dependam da ajuda internacional para se alimentar. Quase 50% das crianças abaixo de 5 anos sofrem de subnutrição crônica.
O que deu errado por lá foi a aplicação prática do socialismo de acordo com a cartilha mais radical. O planejamento central da economia não gerou uma indústria que se preze. A coletivização do campo resultou numa agricultura precária. Um ciclo perverso de secas e inundações nos últimos anos completou o serviço iniciado pela opção ideológica do regime. País mais isolado que existe, a Coréia do Norte praticamente só mantém relações comerciais com a vizinha China. Seu produto interno bruto é de 22 bilhões de dólares – equivalente a 3% do PIB da Coréia do Sul, a parte capitalista da península. É espantoso que, apesar desse estado de penúria, o país tenha parado na semana passada para celebrar, em escala monumental, os 61 aninhos de Kim Jong Il, chamado por lá de "Estimado Líder". Seu pai, Kim Il Sung, de quem herdou o cargo, era o "Grande Líder". Como numa monarquia, o aniversário do manda-chuva vermelho é uma data magna da pátria.
Reuters
Desfile oficial nas comemorações do nascimento do ditador e, à direita, alimentos doados pelo Japão: fome matou 3 milhões numa década
King Jong Il está envolvido num jogo perigoso internacional. Nos últimos meses, admitiu que vem enriquecendo urânio e que recomeçou a produzir plutônio. Também expulsou do país os inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) e se retirou do tratado de não-proliferação nuclear. Em outras palavras, o país dos mortos de fome dá indícios de que está tocando um programa de armas nucleares. Os Estados Unidos, que incluem a Coréia do Norte no Eixo do Mal, ao lado do Iraque e do Irã, suspeitam que Kim já possa ter duas bombas nucleares em estoque. Na semana passada, a Aiea relatou as transgressões ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, que agora estuda a adoção de sanções. O ditador, que já avisou que considerará qualquer punição internacional como uma declaração de guerra, também ameaçou retirar-se do acordo de armistício que pôs fim à Guerra da Coréia, em 1953. Para parar de brincar com bombas, o regime exige maior ajuda econômica de Washington. Se não receber algum DINHEIRO, Kim já deixou bem claro que está disposto a lutar contra os 37.000 soldados americanos que protegem a última fronteira da Guerra Fria – uma cerca de arame farpado de 200 quilômetros de extensão que separa a capitalista Coréia do Sul de sua irmã stalinista Coréia do Norte.
Os Estados Unidos, que em represália cessaram o envio de petróleo para a Coréia do Norte há quatro meses, decidiram ampliar as sanções nos últimos quinze dias. A pior delas foi a suspensão das remessas de comida à população norte-coreana através do Programa Mundial de Alimentos, braço da ONU para arrecadação e distribuição de alimentos. Os americanos contribuíram com mais da metade dos 3,3 milhões de toneladas de alimentos entregues pela ONU aos norte-coreanos desde 1995. Sem a participação deles, só serão distribuídas neste ano 77.000 toneladas, em vez das 511.000 toneladas previstas. "Há rumores de que Kim Jong Il esteja desviando comida para seu Exército, e os americanos não vão voltar atrás até que isso se resolva", disse a VEJA James Morris, diretor-geral do Programa Mundial de Alimentos.
A preocupação de Morris e de outros funcionários das Nações Unidas que se empenham em ajudar a alimentar os norte-coreanos é que o número de pessoas atingidas pela falta de comida aumente a cada dia. Não, evidentemente, na mesa da caciqueria socialista. As velinhas do aniversário de Kim Jong Il foram sopradas num jantar cinematográfico em seu palácio de sete andares, na capital do país. Na mesa estavam algumas das iguarias que o Estimado Líder importa da Europa em aviões destacados especialmente para abastecer as despensas palacianas. Os convidados, membros da elite, levaram como lembrancinhas bebidas e biscoitos. Trabalhadores das fazendas estatais que abastecem o palácio também ganharam um presente especial no dia da festa: eles desfrutaram luz elétrica por 24 horas seguidas, um luxo na Coréia do Norte. A maioria de esfomeados não sentiu sequer o cheiro das guloseimas.
O repórter inglês Clive Myrie, da BBC, esteve recentemente na Coréia do Norte. Foi disfarçado de turista, pois o país não permite a entrada de jornalistas. Num determinado momento, aproveitando-se da distração dos agentes secretos que vigiavam os turistas, ele visitou uma série de lojas a poucos passos da Praça Kim Il Sung, a principal da capital. O que encontrou foram prateleiras vazias. Numa loja havia apenas algumas maçãs. Em outra, todo o estoque se constituía de fatias de pão. Por fim, ele achou um supermercado de verdade, abarrotado de comida importada, eletrodomésticos e bebidas – mas com entrada permitida apenas aos manda-chuvas do regime, que pagam suas compras com dólares ou euros. Um vidro de café instantâneo custava o equivalente a 7 dólares, em alguns casos metade do salário mensal de um trabalhador norte-coreano.
A situação do país já era difícil no governo de Kim Il Sung, o fundador da dinastia. Mas então a Coréia do Norte se beneficiava do comércio camarada com os países do bloco soviético. A derrocada do comunismo no Leste Europeu foi um golpe mortal. Desde 1994, quando o Estimado Líder herdou a Presidência perpétua, a economia só piora. "Foi justamente nos anos seguintes à posse de Kim Jong Il que os indicadores econômicos pioraram", disse a VEJA o americano Derek Mitchell, do Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos, em Washington. De acordo com um estudo coordenado por Mitchell sobre as diferenças entre as duas Coreias, em oito anos a mortalidade infantil no norte disparou 155%. Há 5.100 telefones para cada 100.000 norte-coreanos. A Coréia do Sul tem mais telefones que habitantes. Se existem riquezas no reino do Camarada Kim, elas pertencem a ele e a sua indústria bélica. Apesar de não poder alimentar seu povo, ele continua a torrar recursos na construção de instalações nucleares e no sustento do quarto maior Exército do mundo, com 1,2 milhão de soldados.
Vista do exterior, a festança de aniversário parece de mau gosto. Na Coréia do Norte, a extravagância faz parte de um culto de personalidade enraizado na cultura local. Apesar da ideologia démodé, o líder é visto como o descendente de uma dinastia. É algo que se encaixa perfeitamente nas tradições imperiais da Coréia. "Kim pai misturou os valores do filósofo chinês Confúcio com o socialismo para construir um Estado comunista-religioso", diz Derek Mitchell. "Ele devia ser cultuado como um Deus." Há três anos, o ditador saiu pela primeira vez de seu isolamento imperial para um encontro histórico com o presidente da Coréia do Sul. De lá para cá, Kim Jong Il deixou de ser o misterioso ditador do norte e conquistou certa popularidade no exterior. Seu estilo inusitado de se vestir e de cortar os cabelos na forma de porco-espinho faz sucesso na Coréia do Sul. Um grupo de sul-coreanos até abriu um fã-clube só para ele na internet. Óculos iguaizinhos aos de Kim Jong Il são vendidos por 400 dólares em Seul. Há dois anos, ele viajou para Moscou num trem blindado. Um de seus acompanhantes, um guarda-costas russo, escreveu mais tarde um livro com detalhes picantes da viagem. Contou que o líder norte-coreano tem uma equipe de moçoilas para servi-lo sexualmente, morre de medo de viajar de avião e adora andar de barquinho na piscina de ondas artificiais de seu palácio.
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Autor: Gabriela Carelli
Fonte: Veja
Fonte: Veja
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