Autor: Orlando Fedeli
‘Et die tertia nupciae factae sunt in Cana Galileae;
et erat mater ejus ibi.’
(Jo II, 1)
et erat mater ejus ibi.’
(Jo II, 1)
Foi nas bodas de Caná que Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo seu comparecimento, estabeleceu o sacramento do matrimônio.
Repare-se que estas núpcias foram realizadas ‘in die tertia‘, no terceiro dia. Ora, conforme nos explica e ensina São Paulo na sua Epístola aos Efésios (V,32), o Matrimônio é símbolo de um sacramento muito mais alto: o das núpcias de Cristo com a Igreja: ‘Este mistério é grande, mas eu o digo em relação a Cristo e à Igreja’. Pois assim como o marido e a mulher têm filhos segundo a carne, assim Cristo e a Igreja geram os filhos de Deus.
São Tomás de Aquino, em seus esplêndidos ‘Comentários sobre o Evangelho de São João’ (Tradução, notas e Prefácio de M.D. Philippe O P., Edição Les Amis de Saint Jean, Rimont – Buxy , 1977), repete o que diz São Paulo: ‘Em sentido místico, as núpcias significam a união de Cristo com a Igreja’ (Ed. Cit. Cap. II, Lição I, nº 338, vol. I , p. 338).
Ora, toda geração cristã legítima se faz através do matrimônio. Era, pois, muito conveniente Cristo, cabeça divina da Igreja e seu Esposo, principiasse sua ação apostólica, pela instituição do matrimônio. Daí ter ele comparecido a essas núpcias, em Caná, juntamente com seus Apóstolos e com sua Mãe Santíssima. ‘Et mater ejus ibi‘. E sua mãe estava aí.
Também era muito próprio que isto ocorresse ‘in tertia die‘, porque este era o terceiro dia em que Deus estabelecia uma união com os homens. Pois, no primeiro dia do homem, na manhã original da criação de Adão e Eva, Deus os abençoou e estabeleceu que eles deviam ‘crescer e multiplicar-se’ (Cfr.Gen. II, 28), a fim de que muitos participassem da vida e felicidade divinas. E esta foi, em certo sentido, a primeira aliança de Deus com o homem. E a esta primeira aliança o homem foi infiel quando cometeu o pecado original.
Num segundo dia, Deus firmou sua Aliança com Abraão (Gen. XII, 2-3), prometendo-lhe uma grande descendência, assim como a sua benção e proteção. Foi dessa aliança que nasceu o povo eleito, com o qual Deus firmou seu pacto no Sinai.
Agora, ‘in die tertia‘, Cristo instituía o sacramento do Matrimônio, imagem de suas núpcias eternas com a Santa Igreja.
E São Tomás, comentando essa expressão – ‘in die tertia‘ – diz que o primeiro dia foi o da lei natural; o segundo foi o da lei de Moisés; e o terceiro foi o dia da graça (Op. e ed. Cits. Cap. II Lição I, nº 338, p. 325).
Esta ação de Cristo se deu em Caná da Galiléia. Ora, Caná significa zelo, e o nome Galiléia tem raiz em Galut, que significa exílio. Porque, a Sabedoria divina exilando-se do céu, encarnou-se em Cristo, para , ardendo em zelo, vir a esta nossa terra de exílio, a fim de salvar os homens.
E Deus, Nosso Senhor, se encarnou para salvar a todos os homens, e não apenas os judeus. Por essa razão, Ele nasceu na Judéia, mas fez seu primeiro milagre e começou sua pregação na Galiléia. Ora, a Galiléia era mal vista pelos judeus, porque, depois do Cisma das Dez Tribos, ela pertencera ao Reino de Israel, e este Reino separara-se do culto oficial judaico no Templo de Jerusalém. Além disso, a Galiléia estava em próximo contato com as nações pagãs, sofrendo a influência dos fenícios idólatras. Por todas estas razões é que Natanael duvidou que o Messias pudesse vir de Nazareth, perguntando : ‘De Nazareth pode, porventura, sair coisa que seja boa ? ‘ ( Jo. I, 40).
E, entretanto, foi naquela que era chamada a ‘Galiléia das nações’, isto é, o exílio das nações, foi lá que cristo estabeleceu suas núpcias com a Igreja, porque, após a apostasia de Israel, Deus faria sua aliança com os gentios, no exílio.
Era, pois, entre os galileus, embora menos desprezados que os samaritanos pelos judeus, que Cristo ia iniciar a sua pregação. Queria Ele demonstrar assim que seu zelo não se limitava aos judeus, descendentes de Abraão, mas que Ele vinha, ao terceiro dia, para salvar todos os filhos de Adão.
Os noivos de Caná eram judeus, membros da Antiga Aliança, e suas núpcias se davam ainda de acordo com a Lei de Moisés e os costumes da Sinagoga. Eles representavam então as núpcias de Deus com a Sinagoga, que São Paulo comparou com as núpcias de Abraão com sua escrava Agar, e a de Jacó com Lia. Agar era a escrava e não a esposa legítima e primeira, e Lia tinha os olhos doentes e, por isso, não via bem. Assim, a Sinagoga foi a escrava e não a verdadeira esposa, e, quando chegou o Esposo, ela não o reconheceu, porque não viu nEle a realização das profecias, Ela ‘foi cega ao meio dia’, hora em que levantaram Cristo na cruz no Calvário. Pois, como o próprio Moisés profetizara, caso Israel fosse infiel: ‘ O Senhor te fira de loucura e de cegueira e de frenesi, de sorte que andes às apalpadelas ao meio dia, como um cego costuma andar às apalpadelas nas trevas, e não acertes os teus caminhos’ (Deut. XXVIII, 29). E Isaías confirmou isto ao profetizar: ‘Tira para fora o povo cego, apesar de ter olhos, o povo surdo, apesar de ter ouvidos’ ( Is. XLVII,8).
Mas Sara, a esposa legítima, foi abençoada, mesmo que seu filho tivesse nascido depois do filho da escrava. E Raquel, a segunda esposa de Jacó, mas que ele desejara ‘desde o Princípio’, Raquel tinha olhos claros e que voam bem, por isso o seu nome significa visão de Deus, e seu filho foi o preferido de seu esposo.
No Templo de Jerusalém, o povo da Antiga Aliança ofertava a Deus bois e cordeiros, o sangue e a gordura deles. Eram sacrifícios puramente materiais que faziam para reconhecer o senhorio de Deus sobre tudo o que possuíam. Estes sacrifícios simbolizavam o sacrifício que ia ser realizado no Calvário, e repetido no sacrifício da Missa sobre os altares da Igreja.
Os sacrifícios materiais dos judeus tinham pouco valor intrínseco. De fato, de que servem para Deus carneiros e bois imolados? Ademais, nem estes pobres sacrifícios materiais os judeus faziam de coração puro e com generosidade, e tinham se tornado cegos a seu significado.
Este vazio dos sacrifícios judaicos foi simbolizado no fato de que, em Caná, o vinho da festa de núpcias acabara nas urnas de pedra dos judeus. A incomparável superioridade do valor sacrifício de Cristo no Calvário e nas Missas – sacrifícios de valor infinito porque neles se imola o próprio Filho de Deus – é figurada na superioridade imensa do vinho feito miraculosamente por Cristo, em Caná, sobre o vinho que fora servido inicialmente aos convivas judeus.
Nas bodas de Caná, estavam presentes os Apóstolos de Cristo e sua Mãe Santíssima que eram membros do povo judeu, fiéis à revelação e à lei mosaica. Eles eram os restos fiéis do povo eleito, que sofriam com a decadência religiosa e moral dos filhos de Abraão, e com a cegueira dos sacerdotes, saduceus e fariseus.
Por essa razão, Nossa Senhora, cheia de zelo e de prestimosa caridade, é quem observa a Cristo: ‘Eles não têm mais vinho’ ( Jo, II, 3).
Falando da situação embaraçosa e humilhante em que se encontravam os pobres noivos de Caná, ela se referia, de fato e num plano superior, à situação lastimável do povo eleito, que já não tinha mais ‘vinho’ em seu coração, para ofertar a Deus no Templo. Era Israel como as virgens loucas da parábola, que já não tinham óleo em suas lâmpadas, quando chegou o esposo.
E que vinho era que faltava aos judeus?
São Tomás, no seu Comentário ao Evangelho de São João, que vimos citando, explica que aos judeus faltavam então três vinhos: 1º. o vinho da Justiça; 2º o vinho da Sabedoria; 3º o vinho da Caridade. Porque a Justiça dos judeus no Antigo Testamento era imperfeita, sua Sabedoria era em figura e não real, e sua Caridade não era filial, mas servil. (Cfr. São Tomás, Op. Cit. Cap. II, lição I, nº 347, vol. I, p. 332).
E por que estas virtudes foram comparadas por Cristo ao vinho?
O mesmo Aquinate no-lo explica dizendo: ‘ …o vinho é áspero, e é a esse título que a Justiça é chamada vinho(…) por outro lado, ‘o vinho alegra o coração do homem’ (Sl. CIII,15). É nisto que a Sabedoria é vinho, porque sua meditação traz a alegria mais viva (…) ‘Da mesma forma, o vinho inebria (…) por esta razão se diz que a caridade é um vinho(…) E a Caridade é dita ainda vinho em razão do ardor que ele produz’ ( São Tomás, Op. Cit. Cp. II, lição I, nº 347, Ed. Cit., Vol. I, pp. 331-332).
Quando Nossa Senhora disse a Cristo : ‘Eles não têm mais vinho’, a resposta de Nosso Senhor à sua Mãe, à primeira vista, pareceria dura àqueles que não possuem verdadeira compreensão da Sagrada Escritura. Disse Ele: ‘Quid mihi et tibi est, mulier? Nondum venit hora mea’ _ ‘mulher, que temos Eu e tu com isso? Ainda não chegou a minha hora’. ( Jo. II, 4).
Os protestantes se rejubilam, porque, segundo eles, Cristo teria dado uma resposta dura senão grosseira à sua Mãe, por chamá-la simplesmente de ‘mulher’ e não de Mãe. Na sua malícia esses protestantes nem se dão conta que, dizendo isso, estão acusando ao próprio Cristo Deus de faltar com a honra devida aos pais, como também de faltar com a virtude da mansidão.
Ora, examinando-se melhor a resposta de Cristo, se vê como ela é, de fato, elogiosa para com a Virgem Maria. Em primeiro lugar, convém lembrar que Ele a chamou de ‘mulher’, também no Calvário, dizendo do alto da Cruz: ‘Mulher, eis aí o teu filho’ ( Jo. XIX, 26).
Chamando-a de ‘Mulher’, Ele fala como Deus à sua criatura. Mas, ainda mais importante do que isso para compreender o texto, é que Cristo chama sua Mãe Santíssima de ‘Mulher’, para que todos reconheçam nela aquela ‘mulher’ que profetizou no Gênesis, quando amaldiçoou a serpente: ‘Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua raça e a dela, e ela mesma te esmagará a cabeça’ (Gen. III, 15).
Cristo, então, chama sua Mãe de mulher, para que todos reconheçam nela a mulher , aquela que esmagou a cabeça da serpente ao consentir na Encarnação do Verbo, ‘Semine ejus’, o Filho de Deus nascido de Maria Virgem. E assim como de Cristo se disse bem propriamente ‘Ecce Homo’ – Eis o Homem — , assim também é próprio dizer da Virgem Maria Mãe de Deus: ‘Ecce Mulier’ , Eis a Mulher, Mater et Virgo, aquela que possui as duas perfeições mais importantes da ‘Mulher’: ser Mãe e ser Virgem.
São Tomás comenta que Cristo chama Maria de mulher, para mostrar que Ele era Filho de Deus e de uma mulher, a fim de combater todas as heresias gnósticas, como a dos maniqueus e a dos cátaros, que condenavam a matéria como sendo má em si, e obra do deus do mal. Por isso, maniqueus e cátaros condenavam a mulher, o casamento e a procriação. Afirmando-se também como filho de uma mulher, Cristo condenava as heresias que negariam a sua humanidade, como iam fazer os eutiquianos, que afirmavam ter tido Ele apenas um corpo aparente e não verdadeiro.
Por tudo isso, convinha muito que o Evangelho salientasse que ela era ‘a mulher‘ e que afirmasse ser ela a mãe de Jesus: ‘E Mãe de Jesus estava aí’. Por isso também São Paulo afirma? ‘Deus enviou seu Filho, nascido de mulher’ (Gal. IV,4). Maria, pois, foi a mulher e a Mãe de Jesus.
Cristo afirma que nem Ele nem ela tinham qualquer responsabilidade pela falta de vinho, nas bodas de Caná. Não fora nem por causa de Deus, nem por causa dos justos de Israel que o povo eleito já não tinha nem o vinho da Justiça, nem a Sabedoria, nem a Caridade. Se a Sinagoga estava carente de vinho para as suas núpcias com Deus, isto era por culpa exclusiva dos maus judeus, principalmente de seus príncipes e doutores. Nem Cristo, nem a Virgem tinham qualquer participação na culpa da Sinagoga, da qual não compartilhavam nem da culpa e nem da decadência.
Não chegara ainda a hora de Cristo. Esta hora suprema a que Ele se referia chegaria na Páscoa Santa na qual Ele instituiria o sacrifício da Nova Aliança, na Santa Ceia do Cenáculo e, pouco depois, no Calvário. Agora, em Caná, foi o pedido da Virgem que fez Ele antecipar a hora dos milagres, pois este é o poder da oração: como que ‘forçar’ a vontade de Deus, tal qual Jacó forçou o anjo a abençoá-lo. O que lhe valeu o misterioso nome de Israel, isto é, ‘forte contra Deus’ (Gen. XXXII,28). Não que a oração mude a vontade de Deus, mas Deus condiciona a doação de suas graças e de seus planos providenciais à súplica dos homens.
Maior do que a força de Jacó arrancando a benção do anjo foi a força da petição de Maria arrancando de Cristo, seu divino Filho, a antecipação de sua hora. Por isso, mais do que Jacó ela merece o nome de Israel, ‘forte contra Deus’. Daí São Luís de Montfort, o grande Doutor mariano denominá-la de ‘omnipotência suplicante’. E mais do que a ninguém vale para ela o que Cristo disse dos violentos: ‘O Reino de Deus sofre violência, e todo dia os violentos o arrebatam’ (Mt. XI, 12).
Neste caso do milagre de Caná, Ele quis demonstrar que a transformação da água em vinho – primeiro de seus milagres públicos na ordem natural – se deu por causa das súplicas de sua Mãe a Virgem Maria.
Que importância tinha, em concreto, o ter acabado o vinho numa festa em Caná da Galiléia naqueles longínquos tempos ? Que era Caná, mísera aldeia de uma mísera província desprezada até pelos judeus ? Que era a Judéia, então ? E que eram aqueles pobres noivos de que não restou nem o nome, apesar do milagre enorme que por eles foi feito ?
O fato, de si, minúsculo da falta de vinho numa festa de casamento não tem qualquer importância aos olhos dos homens. Mesmo para os convivas, que importância maior teria o fato de terem que ir embora um pouco mais cedo porque o vinho acabara ? Que conseqüências haveria para o mundo e para a História, caso a festa de núpcias de um desconhecido e irrelevante casal de noivos, na irrelevante e desconhecida Caná se encerrasse antes da hora por falta de vinho ?
Nem a Galiléia, nem Caná, nem os noivos, nem a falta de vinho tinham de si qualquer importância. Mas. A delicada caridade e o afeto maternal de Maria se comoveram diante do embaraço daqueles pobres noivos que nada lhe pediram, mas a quem ela se apressou a socorrer, implorando a Cristo um milagre, ainda que fosse antecipando a hora providencialmente estabelecida.
E São Tomás, nos Comentários que dele estamos citando, nota que Nossa Senhora não esperou que necessidade dos noivos chegasse ao extremo. Quando viu que o vinho estava acabando, logo pediu a Cristo que desse remédio à situação ( São Tomás, op. Cit. Cap. II , Lição I, nº 345, Vol. I p. 330).
Foi essa caridade preventiva da Virgem Maria que levou Dante – sublime poeta a tantos títulos censurável – a escrever estes esplêndidos versos a respeito da bondade de Nossa Senhora:
‘Donna, sei tanto grande e tanto vali
che qual vuol grazia ed a te non ricorre
sua disianza vuol volar sanz’ ali.
La tua benignità non pur socorre
a chi domanda, ma molte fiate
liberalmente al dimandar precorre.
In te, misericordia, in te pietate,
in te magnificenza, in te s’adunna
quantunque in creatura è di bontate’
che qual vuol grazia ed a te non ricorre
sua disianza vuol volar sanz’ ali.
La tua benignità non pur socorre
a chi domanda, ma molte fiate
liberalmente al dimandar precorre.
In te, misericordia, in te pietate,
in te magnificenza, in te s’adunna
quantunque in creatura è di bontate’
(Dante Allighieri, Divina Comedia, Paradiso, XXXIII,13-21).
[Mulher, és tão grande e tanto vales
que, quem graça e a ti não recorre,
seu desejo é o de voar sem ter asas.
A tua benignidade não só socorre
a quem pede, mas muitas vezes,
generosamente, ao pedir, precede.
Em ti, misericórdia, em ti, piedade,
em ti, magnificência, em ti se reúne
tudo quanto na criatura há de bondade!']
Magníficos e verazes versos de um poeta que nem sempre foi veraz, porque mantinha uma ‘dottrina nascosta sotto il velame delli versi strani ‘ (Dante, Divina Comedia, Inferno, IX, 63).
Em seu Comentário ao Evangelho de São João , São Tomás nos diz que, a Virgem Maria, pedindo o milagre a Cristo em Caná, ‘representa nisto a Sinagoga, que é a mãe de Cristo: com efeito, os judeus têm o hábito de pedir milagres, como o diz São Paulo: ‘Os judeus pedem sinais’ (I Cor. I, 22).
Se Nossa Senhora pediu o milagre por caridade material, ela imediatamente dá aos servos do noivo um conselho que serve para todos nós: ‘Fazei tudo o que Ele vos disser’. Por este motivo também, não é então sem razão que a Igreja a chama de Mãe do Bom Conselho. Não só ela foi Mãe do Conselho de Deus Altíssimo, como é mãe que continuamente só nos comunica bons conselhos e aspirações.
Mostra então o Evangelho que Nossa Senhora pediu o milagre. Cristo o realizou, Os Apóstolos o testemunharam.
Prossegue o relato do evangelista dizendo que havia lá seis talhas de pedra preparadas para as purificações dos judeus, cada uma delas com duas ou três medidas, e que Cristo ordenou que as enchessem de água. É essa água que Jesus vai transformar em vinho.
São Tomás indaga por que Cristo quis usar água para fazer o milagre. Não poderia Ele ter feito o vinho do nada ? Claro que sim.
Portanto, se Ele usou a água foi por alguma sábia razão.
São Tomás excogita as seguintes razões para isso:
1ª Para demonstrar que a matéria é boa, ao contrário do que ensinariam os hereges gnósticos de todos os tempos ( maniqueus, cátaros e budistas);
2ª Para nos mostrar que, assim como Ele tinha poder de transformar a água em vinho, tinha também poder de transubstanciar o pão e o vinho em seu corpo, sangue, alma e divindade;
3ª Para nos fazer entender que Ele não vinha trazer uma doutrina nova, mas que o seu ensinamento era apenas o aperfeiçoamento do que Deus ensinara no Antigo Testamento. ( Cfr. São Tomás, Comentário…, Cap. II , Lição I, nº 358, ed. Cit. Vol. I, p.339).
Que símbolos contém a água ?
É certo que a água, de um lado simboliza a humildade, pois assim como a água escorre procurando sempre o lugar mais baixo, assim também quem é humilde busca sempre as posições mais baixas e nunca as mais altas. Se a água sobe aos céus é apenas em forma de vapor aquecida pelo Sol. Pois assim também, quem é humilde e busca os lugares mais baixos, é exaltado pelo ardor do amor de Deus que eleva os humildes acima das nuvens.
Por outro lado a água se adapta a todos os recipientes, simbolizando por isso as pessoas cordatas e mansas que não procuram impor-se mas que aceitam tudo o que lhes acontece como vontade de Deus.
E nossa irmã água – como poeticamente a chama São Francisco – ‘è umile ed utile, et pretiosa et casta’ (S. Francisco, Cântico das criaturas).
Todo símbolo, porém, é ambíguo. E São Tomás nos aponta outro símbolos postos por Deus na água. O Aquinate nos lembra que a água é um elemento frio e instável que, de si, corre sempre para os lugares mais baixos, até chegar no abismo do mar amargo. Ela representa, assim, os pecadores que friamente caem de pecado em pecado, de abismo em abismo, até se precipitarem, afinal, no amargo abismo do inferno.
As águas das talhas de Caná representam ainda os sacrifícios dos judeus no Antigo Testamento, que eram apenas imagens do Sacrifício do Novo Testamento. Os sacrifícios judaicos, eram ofertados por um povo que deixara a reta via, que matara os profetas e ia matar cristo o filho herdeiro da vinha. Essas águas representam então os pecados dos judeus que encheram até a borda os seus corações de pedra. Pois está dito que os servos dos noivos encheram as hidras até as bordas.
Por outro lado, foi Cristo que mandou encher as talhas. Portanto, elas estavam vazias. E essas hidras eram usadas, como dissemos, para as purificações judaicas. Elas estavam vazias, porque os judeus tinham seus corações de pedra vazios de qualquer arrependimento. Eram hidras vazias, porque as águas da purificação judaica eram mero símbolo das futuras águas do batismo que, elas sim, trazem a verdadeira e inteira purificação da culpa original.
Cristo mandou, então, encher as talhas de água, isto é, que os pecadores — de coração duro como pedra – enchessem esses corações , até a borda, com as lágrimas do arrependimento. E os servos seguiram o conselho da Virgem Maria e obedeceram a ordem do Verbo encarnado, e, por isso, lhes foi dado beberem o vinho excelente do milagre de nosso Senhor Jesus Cristo.
Eles eram servos, porque eram judeus, filhos da escrava, filhos da Sinagoga. Mas os aceitam serem purificados nas águas do batismo e nas lágrimas de um arrependimento sincero, estes serão chamados filhos, e eles beberão o sangue do Cordeiro celestial. Eles tomarão o cálice do sangue de Cristo, vinho da Nova Lei, vinho que aquece e que traz a alegria e o fervor do perdão, da graça e o ardor do amor de Deus, e o zelo pela virtude.
Eram seis as hidras de pedra em Caná. Seis, porque, ao criar o mundo, Deus usou seis dias e ao cabo desses seis dias, estabeleceu sua primeira aliança com os homens, e instituiu o primeiro casamento, ordenado a Adão e Eva que se multiplicassem.
Eram seis as hidras de pedra em Caná, e, comenta Hugo de São Victor que eram seis para representar também as seis idades do mundo, desde a origem até Cristo. E o grande São Tomás repete essa explicação do abade de São Victor, relacionando as seis talhas com as seis idades da história do homem.
Essa divisão da História em seis idades, desde Adão até o fim dos tempos — e que daremos a seguir – teve uma aplicação errônea nos escritos de Joaquim de Fiore, pai de tantas heresias milenaristas e escatológicas. Feitas, porém, as prudentes e necessárias ressalvas, de si, ela não é condenável, e, por isso, as citaremos na ordem e correspondência das idades do homem, conforme a exposição de Hugo de São Victor.
IDADES DO MUNDO
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IDADES DO HOMEM
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1ª De Adão até Noé | 1ª Idade pueril do homem |
2ª De Noé até Abraão | 2ª Infância |
3ª De Abraão a Daví | 3ª Adolescência |
4ª De Daví ao cativeiro de Babilônia | 4ª Juventude |
5ª Do cativeiro de Babilônia até Cristo | 5ª Maturidade |
6ª De Cristo até o fim do mundo | 6ª Velhice |
7ª A vida eterna | 7ª O Reino dos Céus. |
Convém salientar que, segundo esse esquema das idades da História – ao contrário do esquema joaquimita que era milenarista – a sétima idade, a do repouso, está além deste mundo, além da História. O Abade De San Giovanni in Fiore com todos os eus seguidores quiliásticos, pelo contrário, esperam um reino de Deus, religiosos político e social, ainda neste mundo . Hugo de São Victor afirma que a sexta idade vai até o fim do mundo, e que, portanto, não haverá um Reino de Deus neste mundo, porque Cristo afirmou: ‘Meu Reino não é deste mundo’ (Jo. XVIII, 36).
Conforme diz Hugo de São Victor, as seis hidras de pedra das bodas de Caná representam ainda os cinco sentidos corporais e o senso interior que unifica as informações dos cinco sentidos. As seis hidras da purificação continham as águas que purificavam os pecados de nossos seis sentidos.
Enfim, convém fazer referência ao fato de que as hidras eram seis porque, além do sacramento do matrimônio instituído então por Cristo, em Caná, Ele ia nos dar mais seis sacramentos, que conteriam o vinho da graça, capaz de nos dar o vigor, o calor e a doçura, para enfrentarmos as dificuldades morais nas várias situações e dificuldades de nossa vida espiritual. É possível interpretar também as seis hidras como seis sacramentos, sendo o sétimo, a Eucaristia, aquele que nos dá o próprio Cristo com seu corpo, sangue, alma e divindade, representado pela próprio Jesus Cristo, presente em Caná.
Está dito ainda no Evangelho que cada hidra continha duas ou três medidas, porque cada sacramento nos dá uma graça sacramental, própria de cada sacramento, além do aumento da vida da graça em nós, o que perfaz duas medidas. Mas, três sacramentos – Batismo, Crisma e Ordem – além da graça sacramental própria e do aumento da vida da graça santificaste, imprimem caráter em nossas almas, o que perfaz a terceira medida.
Hugo de São Victor ensina que as hidras tinham duas ou três medidas, porque elas estavam destinadas a conter as águas da purificação. Ora, nas tentações que nos podem levar a pecado, pode-se distinguir:
1º — A deleitação, na sugestão pecaminosa;
2º — O pleno conhecimento e pleno consentimento da vontade;
3º — A própria obra pecaminosa.
Ora, conforme falte gravidade da matéria de pecado, ou pleno conhecimento e pleno consentimento, o pecado será venial e não mortal. Por isso, o arrependimento deve também conter duas ou três medidas.
E as seis hidras eram de pedra, porque nossos sentidos são empedernidos por nossas culpas, e nós só as lavamos quando as enchemos com as lágrimas de nosso arrependimento e de compunção. E as águas são convertidas em vinho, porque o pranto da culpa é convertido pelo perdão na alegria trazida pelo vinho da graça.
Hidras de pedra – porque a Igreja é de Pedro e contém firmemente as graças do Vinho Eucarístico.
São Tomás de Aquino faz outro comentário ainda, e muito curioso, sobre o significado das seis urnas dos judeus, que Cristo ordenou que fossem cheias de água. Diz ele que ‘no sentido místico [ é preciso compreender que] nas núpcias espirituais, a Mãe de Jesus, a Virgem bem-aventurada, está presente na qualidade de conselheira das núpcias, porque é por sua intercessão que somos unidos a Cristo pela graça’ (Op. Cit. Cap. II , Lição I, , nº 343; ed. Cit. Vol I, p.328).
De outro lado, a pedra das hidras representaria os judeus enquanto as águas seriam os gentios. O vazio das hidras e seu preenchimento pela águas significaria a substituição dos judeus pelos gentios , no Novo Testamento.
E por que as águas, elemento líquido, seriam os gentios, e a pedra – ou a terra, o elemento sólido, os judeus ?
Várias passagens da Escritura indicam isto. Por exemplo, o nome de Moisés, significa ‘Salvo das águas’, não só porque ele foi salvo das águas do rio Nilo, como também porque ele foi salvo do egípcios que eram gentios.
Também, durante o êxodo, ao chegarem a Mara, os judeus só encontraram águas amargas, isto é, salobras e impróprias para saciarem a sede. Porém, quando Moisés lançou nelas o seu bastão de madeira, elas ficaram doces e potáveis. Por que isto ? Porque as águas – os gentios – que não eram ‘potáveis’ para Deus por causa de sua idolatria, tornaram-se doces e potáveis, quando nelas foi lançado o madeiro da cruz de Cristo. Por isso também, Cristo caminhou sobre as águas e ordenou a Pedro que fizesse o mesmo. E Pedro duvidou e começou a afundar, para representar que, em certo momento, ele duvidou da legitimidade do apostolado com os gentios e ‘judaizou’ na questão das carnes proibidas, e , por isso, foi repreendido por São Paulo.
O arquitriclínio experimentou o vinho miraculoso de Cristo e o julgou excelente. Não conhecendo ainda a sua origem miraculosa, falou de sua estranheza ao noivo, dizendo-lhe que, normalmente, os homens servem primeiro o vinho melhor, e depois que os convidados já estão satisfeitos, servem então o pior.
Evidentemente, servir o vinho pior no final da festa não pode ser a norma de Deus., porque envolve falta de generosidade e uma certa astúcia. A cias de Deus não são as vias dos homens. Deus nos dá primeiramente o vinho pior – as agruras e as cruzes da vida – para, depois, nos dar o vinho generoso e perfeito da festa celestial, por toda a eternidade. Antes, temos que tomar o caminho estreito e pedregoso, para, depois, recebermos nossa recompensa imensamente grande, que será o próprio Cristo. Antes, Ele deu aos judeus o vinho do Antigo Testamento, que era apenas um prenúncio do ‘vinho’ eucarístico, que é o próprio sangue de Cristo.
Desse ‘vinho’ melhor, o arquitriclínio não compreendeu a origem, pois não vira o milagre. Assim também, do Messias, os judeus ignoravam a sua origem, e, por isso, lhe perguntavam : ‘De onde vens Tu ? ‘
E Cristo lhes dizia: ‘Vós não sabeis de onde Eu venho’ ( Jo. VIII,14).
Desse modo os judeus não conheciam a origem divina do Verbo, por sua geração eterna no seio de Deus Pai, nem sua encarnação no seio virginal de Maria Santíssima. E, quando Ele a exprimiu, eles recusaram aceitá-la, e tomaram pedras para matá-Lo (Jo. 8, 59 ). Por isso os judeus, desconhecendo a origem divina do Messias não receberam, porque não quiseram, o vinho de sua graça.
Também os noivos de Caná não sabiam explicar ao arquitriclínio a origem do vinho superior, e porque ele fora servido só no final da festa.
Estes noivos representam a Sinagoga, que desconheceu a Cristo e o crucificou, porque inebriada pelo vinho inferior, desejou com zelo apenas o reino neste mundo, e preferiu permanecer no exílio da ‘Galiléia’ , que significa, como vimos, transmigração ou exílio acabado. A Sinagoga amou apenas a letra da lei, e não espírito. E assim como no vinho inferior só se busca o inebriamento do álcool, sem ter nenhuma doçura superior, assim também, a letra da lei mata, impedindo que o espírito das Escrituras seja conhecido e vivifique e inebrie a alma pela doçura da sua Sabedoria.
Pois Cristo veio ao mundo para que tivéssemos vida e saúde em abundância. Para isto, Ele veio fundar a Igreja, geradora dos filhos de Deus com Cristo, para a vida eterna. Igreja fundada na pedra, e na qual Cristo faz jorrar o vinho excelente de suas graças, enchendo até a borda os corações dos fiéis.
Finalmente, convém lembrar que as hidras eram de pedra e estavam vazias, porque o homem é feito de barro, e que a pedra é ‘barro’, isto é, mineral endurecido. Era Adão, o homem pecador que estava petrificado pelo pecado original, e vazio de graça e vida espiritual. Como já vimos, eram seis as hidras vazias, porque seis eram as idades do mundo, que haviam passado até Cristo vir para realizar suas núpcias com a sua Igreja.
A hidra vazia é, então, o homem morto pelo pecado ao qual Cristo devolveu a graça. A hidra vazia é também o homem santo e que morreu materialmente, para quem, no fim do mundo, Cristo ressuscitará com um corpo glorioso e tendo um nova vida, superior a que perdera.
A hidra vazia é, enfim, Cristo morto para pagar os nossos pecados, e que pela ressurreição, venceu a morte, e tornou a encher nossas almas de vida. ‘Et ressurrexit tertia die’. E, por isso, tudo isto que se fez em Caná aconteceu ‘in die tertia’
‘Tal foi o primeiro dos milagres de Cristo ‘, diz São João, a fim de condenar os falsos milagre atribuídos a Cristo, quando ainda menino, conforme contam mentirosamente os Evangelhos Apócrifos ( Cfr. São Tomás, op. Cit Cap. II Lição I, nº 364; ed. Cit. Vol I, p.343).
O milagre de Caná foi o início dos milagres de Cristo que culminaram com a sua gloriosa Ressurreição. Depois disto, Ele se manifestou gloriosamente a seus Apóstolos, que creram nEle. Por isso está escrito: ‘Por este modo deu Jesus princípio aos seus milagres em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nEle’.
Depois da Ressurreição e da Ascensão aos céus, os Apóstolos se espalharam pelo mundo, pregando a Cristo crucificado que ressuscitou dos mortos. A Igreja Católica – cuja cabeça é Cristo – iniciou sua trajetória de missões, martírios, de polêmicas e de cruzadas, levando o nome de Cristo Jesus até os confins da terra, sempre assistida pela Virgem Maria e pelas preces da Igreja triunfante, no céu.
Por isso, a narração do milagre de Caná conclui com as seguintes palavras:
‘Depois disto, foi para Cafarnaum, Ele e sua Mãe, seus irmãos e seus discípulos – toda a Igreja – mas não demoraram lá muitos dias’ ( Jo II,12).
Comparados com a eternidade, poucos são os dias da História entre a Ressurreição e o Juízo, entre ‘Tertia die’ ‘et novissima die’
Amen . Veni, Domine Jesu !
Orlando Fedeli
Publicado em 5 de dezembro de 2004
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